Queria responder essa pergunta à altura de Clarice: “escrevo como
se fosse para salvar uma vida”. Mas não alcanço esse nível de
profundidade – ainda sou raso, tem muito pra cavar. Tenho em mim muitas
palavras presas, elas querem sair, eu sei disso, só preciso encontrar o
ponto certo, o jeito certo. Ou vai ver que eu só preciso botar tudo pra
fora, vomitar, sem me preocupar com o tipo de palavra que vai sair; sem me importar com a sintaxe ou com a ortografia.
Gosto de quem escreve bonito; gosto quando a palavra bate fundo no
peito, me chacoalha por dentro, me estremece; mas também aprecio que a palavra
venha açucarada – mas não demais porque faz mal pra saúde.
Das
palavras se faz magia. Dos verbos o mundo foi criado. Dos poemas
encantamentos foram lançados. Palavras-feitiços, sou bruxo das palavras:
voo não numa vassoura, mas no pensamento. Minha mente faz seu cosmos,
meu cosmos. Sou galáxia e também nebulosa. De meu corpo celestial escorre o
leite divino. Passeio em teus cometas. Vamos para Saturno?, o planeta
dos anéis? Vamos pra mais longe, quem sabe Plutão ou até o fim do fim do
fim do fim... Sairemos do tempo, habitaremos a eternidade. Faremos
morada na matéria escura. Meu buracos negros guardam mistérios. Lua,
minha querida. As deusas têm inveja de ti. Sou feiticeira cósmica, cósmica,
cósmica, adoro o eco dessa palavra. Eco eco eco. Vamos, my darling, meu
amado, meu tesouro incomensurável.
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Se bem lembro
era sexta-feira. Eu estava no nono ano e estudava no período da manhã.
Naquele dia em questão, haveria um show de mágica, como aqueles que a
gente vê na tevê. Pois pegamos nossas cadeiras e fomos para o pátio. O
cara fez suas ilusões, mas teve um truque em específico que marcou minha
memória: ele chamou alguém da plateia, justo o menino valentão da
escola, que me bolinava (nem existia essa palavra naquela época), me
chamava de bicha, viadinho; perguntava-me quando é que eu viraria
“homem”. Do truque eu não tenho muito o que dizer; o que ficou
incrustado em mim foi o desfecho: o ilusionista puxou, sabe-se lá como,
uma cueca azul de dentro do calção do valentão. Todos rimos, achamos
engraçado.
Agora pulemos para segunda-feira. Recreio. A sirene toca,
eu e uma colega fazemos menção de entrar na sala. O meu bolinador me diz
alguma coisa, da qual não lembro e também não importa. Eu resolvo
contra-atacar: dirijo-lhe os seguintes adjetivos: cuequinha azul. Pois
ele não deve ter gostado; quando entrei na sala – e só eu havia entrado,
não sei onde a colega que me acompanhava tinha se metido –, o valentão
pede aos seus comparsas que vigiem a porta. Eu já estava sentado, ele
para a minha frente; você vai o ver a cuequinha agora, diz ele, e abaixa
as calças, mostrando-me o seu pinto. Ele guarda o pau de novo e sai da
sala. Quando a turma volta pra sala, eu sei que falam de mim, alguns
riem da minha cara. Eu estava humilhado. Fui reagir a provocação,
achando que sairia por cima, mas acabei no chão. Não sei como aguentei
até onze e vinte, a hora em que a aula acabava, não me lembro de mais
nada.
Em casa não disse nada pra ninguém. Não sei por que eu não
contava esse tipo de coisa. Lembro-me que naquela tarde eu me senti um
lixo. Não entendia porque isso acontecia comigo, uma pessoa que amava
Deus, não fazia bullying com ninguém, ia pra igreja, um bom aluno.
Acredite: meu único conforto foi tomar banho, assistir As Patricinhas de
Berverly Hills na sessão da tarde.